03 novembro 2011

.*. Sem palavras.*.

E com vc's, Clara e a noite segundo Jota Mombaça:

Lembro de ter ouvido, numa conversa há algum tempo, uma moça reclamar: “eu acho que ela deveria gritar menos – e cantar mais.” Na ocasião, devo ter retrucado alguma coisa, mas só agora tenho a resposta perfeita, engatilhada, pronta para ser desferida contra os limites da moça que não soube antever a direção que a voz de Clara (foto) estava tomando. “Ela gosta de gritar”, à época, concorria ao MPBECO, e eu já estava cada vez mais interessado em ouvi-la arranhar irresponsavelmente a superfície demasiado plana em que passeavam – e ainda passeiam – a maioria das cantoras que meus ouvidos alcançam pelas esquinas por que passo. Clara machucava o tédio com seu canto.

Não sei se no festival já era A noite que lhe acompanhava, mas tenho certeza que foi assim que me foi anunciada num cartaz do Circo Tropa Trupe (naquele tempo, uma vez por mês rolava um som no circo): Clara e a Noite: o corpo todo a serviço da voz e as constelações em êxtase. No entanto, apesar de ter já experiência (já cantava na Orquestra Boca Seca, tinha estado no Pangaio anteriormente, …), o canto de Clara era de um percurso bastante arriscado – não pela complexidade técnica da música, mas pela própria natureza experimental da cantora -, às vezes um tanto inseguro, mas com a coragem de uma cantora entregue à sua autodescoberta. Tateava ainda, mas já tinha jeito de querer-se devorar.

Então, passados uns dois anos, teve uma noite em que o Café Salão se entupiu de gente para ouvir o show recém chegado de turnê de Clara e a Noite. Desse dia para trás me era distante a lembrança de um show da Clara, tinha tempo não a ouvia – senão através dos materiais que o Coletivo Records eventualmente compartilhava via blog. No Café Salão qualquer show tende a ser incrível, porque não tem mais-altura de palco (artista e público ficam no mesmo nível) e a gente fica próximo à beça da banda. Lembro de, uma vez, ter tomado todas lá no show da Alcatéia Maldita, tirado a roupa e dançado rock alucinado. Nesse dia em que fui ver Clara e a Noite não fiquei tão bêbado, mas fiquei alucinado (porém atento) diante do novo canto de Clara, onde, ao invés de qualquer rastro de insegurança, havia um tipo de satisfação muito peculiar: ela cantava como se quisesse passar na nossa cara aquele vozeirão, como se merecesse cantar daquele jeito.

Foi um desconcerto total, quem me viu dançando sabe: minhas pernas entortaram diante da beleza agressiva da voz de Clara, que cantou como quem arromba portas. Ela sempre rasgou, sempre cantou forte, mas naquele dia eu vi que, agora, ela havia adquirido uma nova consciência, havia se tornado dona da própria voz. Lembro que, durante o ENEARTE (que não se resumiu à noite em que cortaram o som do STA), quando do show dela, encontrei um amigo de Recife que me comentou empolgado: “porra, velho, ela canta demais!” Concordei com a cabeça e deixei o cara pra lá. Estava ouvindo o show.

O que faz toda a diferença no canto de Clara não é exatamente a consciência adquirida, mas justamente o percurso que ela fez na raça, de olhos meio vendados, inventando sozinha, claro que cheia de referências, sua forma de agir na música. O que deu a Clara esse poder de canto não foi o encontro com a técnica vocal – embora este lhe esteja possibilitando essa consciência deslumbrante em pleno desenvolvimento -, mas todos os estudos anárquicos que ela fez sobre si, sobre sua própria voz. Clara está cada vez mais afinada, mas de uma forma não-cartesiana, torta, autoral, uma forma cuja técnica, propriamente, surge num segundo plano, para ampliar o canto que ela mesma inventou para si.

E agora Clara vem como um meteoro iluminando a noite (a propósito, muito me assusta saber que os jurados da final deste último MPBECO tenham preferido a interpretação meia-bossa da moça que cantou a música de Ivan Lins (digo…: Widger Valle)). Fabão me disse que talvez tenha um EP a caminho – ou eu sonhei com isso e estou confundindo a realidade. Mas quero terminar este texto com um conselho para Clara, diretamente: reconheçamos o que faz do disco do da Silva & d malassamBROSband o maior lançamento do ano (e dos últimos tempos) aqui em Natal: o cuidado com a linguagem, a autocrítica e a entrega. E claro: letras sagazes e arranjos descolonizados também vão lhe cair bem. Vá fundo, Clara! que ao teu som não cabem fronteiras, que a tua voz quer mamar no mundo…

texto retirado do Blog: Substantivo Plural

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